domingo, 12 de julho de 2009

Existem coisas que eu realmente não entendo.

Ainda me lembro, como se fosse ontem, daquelas agitadas tardes de domingo no campo do Doravante Esporte Clube.

O ano era 1989, e o campeonato metropolitano de várzea ardia como brasa. A rivalidade entre os bairros refletia nas torcidas, que por sua vez transmitiam o clima tenso para dentro de campo. Não raro, partidas acabavam em pancadaria generalizada. Não raro, o trio de arbitragem deixava o local sob a proteção policial.

Mas nada disso apagava a minha admiração pelo Doravante Esporte Clube. Não só por ter nascido e sido criado nas ruas do bairro; e sim porque o meu velho pai fôra o quarto-zagueiro mais idolatrado da história do time. Pena que eu não herdei todo o seu talento e tive que me contentar em ficar nas arquibancadas. E foi justamente das arquibancadas que eu avistei aquela figura de que não me esqueço jamais.

Pinta de malandro suburbano. Estatura mediana. Sempre de branco da cabeça aos pés: camisa, calça, sapatos e boina. Parecia um Pai de Santo. Uma entidade. Na boca, dois dentes faltando e muito palavrão sobrando. Nêgo Jóia era quase lendário. Já tinha sido de tudo um pouca em sua vida: carpinteiro, pintor, massagista, mascate. Cobrador de ônibus até um dia em que a linha 777 foi assaltada e ele dedurou um dos assaltantes. Aí andou sumido por uns tempos. Nêgo Jóia tinha uma marca registrada: seu incorrigível mau-humor. Era do tipo que reclamava de tudo. Do calor, do frio, da chuva, do vento, da molecada da rua e principalmente do Amaral, ponta-esquerda do Doravante.

Pobre Amaral. Não tinha um só jogo em que o Nêgo Jóia não pegasse no seu pé. Quando prendia a bola, Nêgo Jóia o xingava por atrasar a jogada. Quando soltava rápido, era achincalhado por não cadenciar o jogo. Todo jogo, era a mesma coisa. Nêgo Jóia no alambrado aborrecendo o coitado do Amaral:

- Desgraçado, pede pra cagar e sai!

O Doravante mudava de lado, Nêgo Jóia também. Só para acompanhar o sujeito:

- Porra, vai ser azedo assim na puta que o pariu.

Na verdade, Amaral não andava lá em boa fase, mesmo. Quase sempre matava de canela. Perdia gols incríveis, desses que até um garotinho de seis anos de idade faria. Até gol contra, de cabeça, tinha feito. A uruca estava brava. Diziam que alguém tinha feito um trabalho e amarrado suas pernas. Diziam que tinha arrumado uma amante e esquecido a família. E o futebol também. Mas continuava no time. E Nêgo Jóia no seu pé:

- Caralho, tira essa merda do time!! Ô seu treinador, tira essa porra! Fora Amaral! Fora Amaral!

Parecia pessoal. Nêgo Jóia tinha uma bronca tão grande do rapaz que em certas horas chegava a incomodar. Ele nem sequer prestava atenção na partida. Só queria saber de azucrinar. A bola do outro lado do campo, e ele xingando. O jogo paralisado, e ele ofendendo. Coisa de louco.

Até que um dia o Lima, treinador do time, resolveu sacar o Amaral. Não que as broncas do Nêgo Jóia tivessem influenciado. O Lima sacou que o cara estava precisando esquentar um banco. Já tinha tido muita chance. Nêgo Jóia, claro, delirou.

Como que num passe de mágica, o Doravante mudou da água pro vinho. O Betinho, que ocupou a vaga deixada pelo Amaral, caiu como uma luva no esquema do time. O menino era um azougue; saracoteava pela ponta, deixando os laterais adversários malucos. Invariavelmente era considerado o melhor em campo. Por causa dele o time passou a golear seus oponentes, desfilando atuações impecáveis, liderando o campeonato.

Então naquele domingo, nosso glorioso Doravante batia o Estrela Azul por cinco a zero, em mais uma grande jornada de Betinho e do time todo. Notei aquela figura, que andava um tanto sumida, toda de branco se dirigindo ao alambrado e parando bem atrás do banco do Doravante. Era ele, Nêgo Jóia. Confesso que não acreditei quando o ouvi gritar:

- Ô Lima! Ô Lima! Põe o Amaral! Põe o cara.

Cheguei até mais perto para poder ouvir melhor.

- Ô Seo Lima, põe o Amaral! Amaral-Amaral-Amaral!!!

Eu não estava entendendo mais nada. O cara que mais odiava o Amaral, agora o queria no time! Não me contive e fui ao seu encontro para saber o porque dessa mudança repentina.

- Qual é Nêgo, tá apaixonado pelo Amaral?

- Que é isso, dotô? Tá me estranhando? Eu quero que esse cara se dane.

- Não parece. Por que você o quer no time?

- Justamente por isso, dotô. Se ele não tá no time, de quem é que eu vou reclamar?

Existem coisas que eu realmente não entendo.

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